segunda-feira, 27 de julho de 2015

A CRIANÇA NÃO ESTÁ MORTA

A criança não está morta
A criança ergue os punhos contra sua mãe
Que grita "Afrika!", grita o hálito 
Da liberdade e da estepe
Nas mediações do coração cerceado

A criança ergue os punhos contra seu pai
Na macha das gerações 
Que gritam "Afrika!", gritam o hálito 
Da retidão e sangue
Nas ruas de seu orgulho sitiado

A criança não está morta, não em Langa, nem em Nyanga
Nem Orlando ou Sharpeville 
Nem no departamento de polícia em Philippi
Onde ela resta com uma bala atravessada na cabeça

A criança é a tenebrosa sombra dos soldados
Em guarda com rifles sarracenos e cassetetes
A criança está presente em todas as assembléias e decretos
A criança perscruta através das janelas das casas e dentro dos corações das mães 
A criança, que apenas quis brincar sob o sol de Nyanga, está em todo lugar

A criança, transformada em homem, percorre toda África
A criança, transformada em gigante, viaja através do vasto mundo

Sem passaporte

INGRID JONKER (tradução: Cid Rodrigo Leite)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

À ESPREITA

A Guilherme Simas

As rochas que debruam o mar
recolhem entre si uma garça,
que quara impassível à marola
à espreita do prateado no azul;

repente alastram-se asas
num voo macio –  
peixe que dança
em pinça de bico –
e os caniços de volta
entre as rochas do mar.

Beleza muita,
trivial, o belo;
eu também sou caçador.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

POUSO

Escora o ar
debruçado,
pássaro: na fímbria,
o voo está pronto.

Solto do galho
jogado ao ar
vertical quase
e certeiro: outra corda bamba de galho.

Átimo sutil,
pouso em pássaro. 

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

TÉDIO


Um estranho sentimento me atinge
carecendo de fim, início, e meio;
por não saber revelar esta esfinge
vou dizer que do vazio estou cheio.

Ardor ausente que não alivia
carregando a alma na ausência de cor.
Vá rouxinol pergunte a cotovia:
por que levou consigo todo humor?

 Ah!, estranho sentimento inefável
corre imóvel, tempo nu, indomável
– Qualquer coisa que se pensa é inútil!

Desesperado na impotência vejo
que nesta hora o que eu apenas desejo
é perfurar este tédio inconsútil.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

CANAVIAL EM PERNAMBUCO

A caminho do mar
outro surgiu do chão:
ondas quebravam em foices
de gente escondida
sob densa roupagem
medindo forças com o sol.
– Então quem há de ser mais austero?
Senão como há de sobreviver?

Chegando o mar, altos e imponentes coqueirais
surgiram, centenas deles!, faziam o vento dançar.
Ao assistir o espetáculo, quase esqueci-me de
Pernambuco, dos sertões.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

PALMEIRAS IMPERIAIS DO MUSEU DA REPÚBLICA

Chuvisco em vento, ar
água tecem o tempo
tremulam a paisagem.

Observadoras, palmeiras imperiais
do jardim do Museu balouçam
calmas, se embolando no úmido véu,
voal d’água, que avolumam seus cabelos.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

AMENDOEIRA DA AULA DE FILOSOFIA

Do segundo andar a porta aberta convida a entrar a alta amendoeira –
está ventando muito – e suas folhas, grandes borboletas verdes
coalhadas sobre galhos entrevistos.

Grandes borboletas verdes, juntas, voam presas,
rodopiam a frondosa amendoeira. 
– Venta muito... – Nenhuma borboleta desprende a cair ou alçar às nuvens.

Na aula de filosofia o chão desapareceu junto às paredes,
à porta e ao quadro negro;
as vozes cessaram: tudo era amendoeira.